Para quem já assistiu à série “The Good Doctor”, atualmente disponível no Brasil pela Globoplay, não chega a ser surpresa o fato de pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo contarem com recursos e habilidade para o exercício de atividades profissionais. Aliás, é correto afirmar que boa parte dessas produções audiovisuais, se não joga por terra a desinformação, ajuda a normalizar um aspecto que não deveria ser motivo de exclusão, e sim de inclusão, sobretudo quando se leva em conta as possibilidades de boa performance no mercado de trabalho. É bem verdade que isso depende muito da função em que a pessoa com TEA irá trabalhar, mas, mesmo aqui, um paralelo é possível: não é verdade que uma das referências norteadoras da busca por trabalho hoje em dia é a vocação? Nesse sentido, vale a pena observar a experiência de quem tem agregado e trazido soluções para tornar a inclusão a regra, e não a exceção. É o caso da Specialisterne, cuja proposta nós conheceremos nos parágrafos a seguir.
Em 2004, Thorkil Sonne atuava no ramo de tecnologia e, logo após as férias, viu seu filho, à época com sete anos de idade, elaborar um desenho, que, em seguida, Sonne veio a descobrir que era o índice dos mapas da Europa. Naquele momento, Sonne viu uma habilidade muito específica que seu filho possuía e que se encaixava na área de tecnologia. Ao buscar iniciativas que pudessem ter a ver com autismo e trabalho, Sonne não encontra muitas e decide, então, fundar a Specialisterne, uma consultoria de tecnologia para capacitar e inserir adultos no mercado de trabalho.
Em entrevista exclusiva ao blog da Microexato, Rute Rodrigues, gerente de formação da Specialisterne Brasil, observa um alinhamento no que se refere à proposta da consultoria: “Hoje o nosso trabalho, de acordo com o que nós nos propusemos a fazer, abrange mais as áreas de TI e de Exatas. Nós funcionamos como uma consultoria de tecnologia, assim como tem tantas outras nesse mesmo segmento, e a nossa principal diferença é que nossos funcionários todos são pessoas com autismo”, explica.
Em um momento em que a singularidade dos indivíduos é assinalada pelo tom muitas vezes aspiracional de suas próprias trajetórias de vida (basta ver como em plataformas como o LinkedIn, as histórias de superação são mais do que destacadas), chama a atenção o fato de que os relatos que a Specialisterne possui são experiências não somente legítimas, mas também originais. “Temos casos de pessoas que passaram suas vidas estudando, que são os melhores de suas respectivas turmas, alguns até com mestrado e doutorado, mas que não conseguem oportunidades profissionais. Isso gera uma frustração muito grande”, comenta Rute Rodrigues. De acordo com dados do IBGE, no Brasil, 85% de pessoas com TEA estão fora de mercado de trabalho.
Por esse motivo, são muitos os que procuram a Specialisterne não apenas porque querem um trabalho, mas porque querem se manter no trabalho. Rute explica: “São pessoas que, numa entrevista de emprego, não têm o hábito de valorizar suas habilidades e competências. São pessoas, a um só tempo, precisas e comedidas em relação ao que podem realizar”.
Por outro lado, existem também os casos das empresas que não sabem como lidar com pessoas com TEA. Isso tem a ver com o fato de que, para além da iniciativa de inclusão, é necessário pavimentar um caminho que não se materializa pelas estruturas físicas; antes, tem a ver com outro elemento igualmente fundamental. “Às vezes, a comunicação não está legal e o colaborador não sabe o que tem de fazer. Com isso, a performance cai. Consequentemente, as pessoas acabam sendo demitidas”.
Infelizmente, é preciso registrar as histórias de pessoas que tiveram diagnóstico tardio de sua condição e também de casos de bullying. A propósito do diagnóstico, Rute Rodrigues ressalta que há uma quantidade significativa de pessoas que tiveram conhecimento do seu diagnóstico já na fase adulta. Já sobre os casos de bullying, a gerente de formação da Specialisterne destaca o trabalho da mídia no sentido de tornar a convivência mais natural. “É importante o trabalho dos meios de comunicação para que isso se torne parte da nossa vivência, para que saibamos mais das características, que são muito importantes”.
Rute Rodrigues detalha a atuação da Specialisterne em três desafios. Num primeiro momento, é encontrar pessoas com TEA que tenham interesse e motivação para trabalhar com TI. Depois, é oferecida uma capacitação gratuita, num total de 400 horas, que envolve não somente a área de tecnologia, mas, também, de habilidades sócio-profissionais, aquelas voltadas para o dia-a-dia do trabalho – como a de comunicação, trabalho em grupo, no que pode ser resumido como soft skills. Quando surgem as vagas, a partir das mais de 20 empresas que têm parceria com Specialisterne, há um mapeamento dos profissionais de acordo com as respectivas formações. “Nós buscamos fazer um match muito cuidadoso do profissional selecionado para a empresa”, destaca Rute.
Atuar junto às empresas também é um papel que a Specialisterne tem desempenhado no sentido de adequar as expectativas. “É o momento de preparo do time, explicando o que é o autismo e já passando as necessidades de suporte que esse colaborador vai precisar, sem mencionar o fato de fazermos o acompanhamento semanal nos postos de trabalho. E nesses tempos de pandemia nós criamos protocolos de on board remoto, também. O apoio é não só com a pessoa com TEA, mas também com o ponto focal do time”, comenta a gerente da Specialisterne.
Quando esse público neurodiverso encontra a sua área de habilidade, e desde que tenha o suporte adequado, é possível promover uma vantagem competitiva para o time, em particular, e para a empresa, em geral, afirma Rute Rodrigues. “Devido à capacidade de concentração, de constância, à atenção aos detalhes, ele pode performar como qualquer pessoa da equipe ou são observados resultados ainda mais expressivos”, destaca a gerente.
E existe ainda outro ponto que merece ser ressaltado: “Os gestores têm observado que, tendo em vista as adaptações para o colaborador com TEA, toda a comunicação do time tem melhorado, tornando-se mais objetiva e mais direta, beneficiando, assim, a todos”. Afora isso, a gestão por habilidade acaba gerando impacto para outros profissionais da equipe, uma vez que otimiza as competências de cada colaborador envolvido.
Não apenas em The Good Doctor, mas também em outras produções, como as igualmente celebradas Rain Man e Atypical, as pessoas com TEA são apresentados como verdadeiros personagens, ora hipersensíveis, ora com capacidade ímpar de realização. No mundo real, nem é preciso tanto. Ao serem abraçados pela proposta inclusiva, quem deseja trabalhar sabe que não é preciso ser herói para fazer a diferença.
*Fabio Silvestre Cardoso é jornalista, doutor em Integração da América Latina pela USP e mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi. É autor do livro Capanema, lançado pela Editora Record.Linkedin
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