Por Fabio Silvestre Cardoso*, especial para a MextMag
No ano de 2008, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o dia 2 de abril como a data de Conscientização Mundial do Autismo. Mais do que uma lembrança protocolar, o que se nota é a importância que o tema vem ganhando não apenas junto à comunidade científica, mas, também, para toda a sociedade. Os números ajudam a explicar a escalada de atenção. Conforme dados apresentados pela Organização Mundial da Saúde em 2019, uma em cada 160 crianças tem um Transtorno de Espectro Autista
No ano passado, por ocasião do Dia de Conscientização Mundial do Autismo, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, afirmou que a data internacional é um momento para se manifestar “contra a discriminação, celebrar a diversidade de nossa comunidade global e fortalecer o nosso compromisso com a inclusão e participação plenas de pessoas com autismo”. Guterres também salientou que as novas tecnologias assistivas acessíveis para todos
Se, no cenário internacional, a proposta é pela ampliação dos recursos disponíveis para a atenção e cuidado, no Brasil, ainda há muito o que fazer. Essa é a opinião de Caio Abujadi, psiquiatra da infância e adolescência, mestre em psiquiatria pela FMUSP e presidente da Associação Caminho Azul, instituição criada com o propósito de promover atividades de assistência às crianças e aos indivíduos carentes e às suas famílias.
Abujadi concedeu uma entrevista à MextMag, onde não somente fala sobre os últimos dados relacionados ao diagnóstico de autismo, mas, também, ressalta a importância da criação de uma rede de cuidado e atenção para os pacientes portadores dessa condição.
A entrevista está dividida em duas partes. Na primeira, Abujadi fala do estado da arte da pesquisa relacionada ao autismo e de por que, recentemente, parece ter havido uma explosão de casos.
A seguir, a primeira parte da entrevista.
MextMag – Começando pelas definições, talvez por estarmos mais expostos ao tema nos últimos tempos, muito tem se falado sobre o autismo, mas as definições, muitas vezes, são imprecisas. O que nós precisamos saber hoje sobre esse tema?
Caio Abujadi – O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento. Isso envolve questões relacionadas à genética e às alterações bioenergéticas intracelulares. Então, nós acreditávamos que íamos descobrir todos os genes que causavam o autismo, mas nós descobrimos que não se trata de um transtorno genético propriamente dito. Então, 30% das crianças têm uma alteração genética, primária ou secundária. Dito de outra maneira, existem outros problemas que tornam possível desenvolver uma alteração comportamental que gera o autismo. Além disso, existem outras 70% das pessoas que são indivíduos que têm uma alteração intracelular, de gerenciamento intracelular, que afeta mais o sistema neurológico-imunológico, mas multissistêmico, que acaba gerando uma alteração bioenergética-intracelular, que é a grande novidade que nós temos tido no último momento em relação às pesquisas.
MextMag – Explique para nós, por favor, como acontece essa alteração intracelular.
Caio Abujadi – Na verdade, esse desarranjo bioenergético faz com que essa manifestação de genes, a produção de energia intracelular da mitocôndria, existe esse desarranjo nesse sistema, e isso faz com que eu gere esse transtorno. No transtorno, é possível ter alterações relacionadas ao cérebro social, uma dificuldade no manejo do ambiente social, desde fases mais precoces da sociabilidade até fases mais complexas do ambiente social. É possível ainda ter alterações no início do desenvolvimento, e nos casos mais graves na vida toda, na percepção, o senso perceptivo exagerado, exacerbado e muitas vezes disfuncional, desequilibrado. Você tem alteração na comunicação e na linguagem. Algumas alterações de motricidade, de equilíbrio, no sistema proprioceptivo. E um padrão de comportamento que é bem típico, que, na verdade, não é uma parte da patologia, é um movimento de compensação do organismo, por conta de um cérebro mais excitado, então, numa forma de o cérebro tentar se organizar, o que se vê é o padrão de comportamento repetitivo. Então, isso vai desde o comportamento repetitivo de ordem inferior, repetitivo no movimento – estereotipias, ecolalias e nas questões sensoriais – ou padrões de comportamento repetitivo de ordem superior, que são aqueles de crianças mais inteligentes, como interesses em determinadas atividades, em determinadas habilidades, já é uma coisa mais cognitiva. Mas é o padrão de ritual, tem um comportamento ritualístico.
MextMag – Caio, é correto afirmar que, nos últimos anos, tem havido um aumento de exposição desses casos?
Caio Abujadi – O aumento é gritante, uma coisa exponencial. E no CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças, em inglês americano) eles fazem uma avaliação a cada dois anos da incidência, e a incidência vem aumentando de 2000 para cá de 1 pra cada de 200 casos. Em 2014, eles chegaram a 1 pra cada 59. Só que o CDC faz uma avaliação por telefone, então, não é muito fidedigna. Mas tem um trabalho publicado em 2016 pela Pediatrics, em que eles avaliaram 43 mil crianças de forma multicêntrica e eles chegaram em uma incidência de 1 para cada 40 em 2016. Entre a década de 1940 e a década de 1960, era um pra cada 10 mil/20 mil casos. Então, saímos desse lugar para 1 pra cada 40, agora. É um aumento de incidência muito gritante, e no início a ideia-diagnóstico sobre o autismo era diferente do que é hoje. Nós só diagnosticávamos casos graves.
MextMag – Quando isso começou a mudar?
Caio Abujadi – Da década de 1980 para cá. E dos anos 2000 para cá mudou gritantemente o diagnóstico. Nós percebemos que a incidência era maior, mas, mesmo assim, a incidência vem aumentando muito. Isso corrobora com as teorias mais novas de incidência, de fisiopatologia.
Nós sabemos hoje que essas alterações bioenergéticas, essas alterações genéticas, que causam autismo, elas se somam ao longo das gerações. É como se todos nós tivéssemos genes do espectro do autismo, e com o cruzamento das pessoas as crianças nascessem com a probabilidade maior de ter o autismo, e daí isso vai aumentando de geração para geração. Então, assim, nós não sabemos muito bem onde é que isso vai parar. Mas, realmente, nós estamos tendo um aumento de incidência muito grande.
MextMag – É possível rastrear os motivos para termos tantos casos assim?
Caio Abujadi – Isso tem a ver com o mundo moderno. Quando você vai fazer as avaliações de incidência, os índices em cidades, em regiões urbanas, são muito maiores quando comparados com as regiões rurais que não utilizam agrotóxicos. Nós estamos querendo entender essas hipóteses, mas a poluição, o estresse, o mundo moderno, as dificuldades relacionadas ao dia-a-dia, as pessoas ficam predispostas a essas alterações bioenergéticas intracelulares. Atualmente, nós sabemos que as alterações bioenergéticas intracelulares são a causa não só do autismo, mas de todas as doenças psiquiátricas adquiridas. A diferença é que, no caso do autismo, você nasce com esse distúrbio, com essa alteração bioenergética intracelular; ao passo que, na depressão, na bipolaridade, no TOC, você desenvolve esse distúrbio, que é como se fosse uma inflamação no cérebro, que causa esse distúrbio por um processo de oxidação. Essa oxidação é mitocondrial, é o estresse oxidativo, e isso acaba gerando esse distúrbio, e aí você tem um quadro de depressão, de bipolaridade. Então, nós podemos adquirir isso. E nós estamos vendo que o mundo moderno é muito responsável por isso. Então, existe uma incidência de quadros de autismo no interior, nas regiões mais rurais, é bem menor.
MextMag – É possível estabelecer uma escala de quão menor?
Caio Abujadi – Chega a ser 10 vezes menor, em alguns locais. E mais: a incidência de quadros graves é muito menor, também. Como todos os demais transtornos, doenças psiquiátricas, neurológicas, imunológicas, cardiovasculares, metabólicas, a maior parte das doenças que nós estamos tendo hoje tem a ver com o mundo moderno.
*Fabio Silvestre Cardoso é jornalista, doutor em Integração da América Latina pela USP e mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi. É autor do livro Capanema, lançado pela Editora Record. Linkedin
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