que é Fonoaudióloga especializada em linguagem e autismo e que defende a importância do acompanhamento durante a adolescência.
Se é verdade que na infância o cuidado para com crianças com Transtorno do Espectro Autista merece toda a atenção, também é correto afirmar que a adolescência e a fase adulta exigem um olhar com semelhante precaução. Ocorre que muitas vezes pais e mães ficam desamparados quando precisam de acompanhamento específico com adolescentes. “Quando pensamos na parte neurológica e da plasticidade cerebral, à medida que vai crescendo e fica muito tempo em um serviço, a criança permanece num platô e não há tanto desenvolvimento a partir daí, e os serviços acabam encaminhando as crianças para outro lugar”, explica Letícia Segeren , fonoaudióloga especializada em linguagem e autismo.
Acontece que esse “outro lugar” não existe para determinados tipos de caso. Com a dificuldade de encontrar esse espaço quando o filho é adolescente, a melhora do desenvolvimento acaba sendo um pouco menor, principalmente nos casos mais leves. Como os pais e mães lidam com isso? Na entrevista a seguir, Letícia Segeren responde a esta e a outras questões, para além de destacar a importância da autonomia para que adolescentes e as famílias possam ter uma experiência menos turbulenta nessa etapa tão importante da vida dos jovens.
Como é que foi desenvolvido o seu tema de pesquisa? Mais precisamente, como começou a sua investigação?
Letícia Segeren – Quando eu escolhi a fonoaudiologia, os primeiros pacientes com os quais eu tive contato foram crianças autistas. E esse tema me ganhou já nesse início. Eu fiquei super interessada em querer saber mais sobre esse mundo: as características, de como poderia ajudar e fazer a diferença. Daí, quando eu vi, na faculdade que estava, que não havia tantos pacientes, decidi começar a pesquisar já na iniciação científica ainda na graduação. Eu vi, então, que existiam poucos trabalhos a respeito de adolescentes autistas e família. Foi nesse momento que surgiu a primeira ideia de pesquisar esse assunto.
A trajetória foi bem difícil porque, quando comecei a procurar os sujeitos de pesquisa, eu não encontrava. Nós queríamos fazer uma pesquisa bem maior, só que, quando procurávamos mães de adolescentes com TEA, nós não achávamos. Eram poucas, na verdade. Não havia nas instituições, o contato era muito difícil. Porque a maioria dos lugares atendem as crianças. Foi então que encontrei uma instituição que atendia adolescentes – e mesmo assim o número de mães que eu consegui entrevistar foram só 11.
Mas quando eu fiz a entrevista no modo qualitativo, com perguntas abertas, nas quais as mães poderiam falar o que queriam, diferentemente de uma entrevista quantitativa, com respostas sim e não, foi muito interessante porque eu tive contato com as dificuldades. E pude ver como essa área precisa de atenção. Depois, eu fui para o aprimoramento, quando fazemos imersão, trabalhando um ano só nessa área.
Já no mestrado e no doutorado, que vieram em seguida, eu mudei um pouco da área de adolescentes, mas sempre mantive o foco na parte da família e das mães e do stress que essas famílias acabam enfrentando no dia a dia por conta da dificuldade que o quadro traz.
A propósito da natureza da sua investigação, o que sua pesquisa ganhou ao trabalhar mais essa abordagem qualitativa?
Letícia Segeren: O que mudou, sobretudo ao ouvir esse outro lado da família, é perceber o quão difícil é o dia a dia. As dificuldades que têm de ser encaradas, a dificuldade de encontrar médico ou terapias. E até a decidir o que é melhor, porque agora nós vemos tantas diferenças de tratamento e escolher o que é melhor para os filhos. O que mais me marcou era a preocupação com o futuro: “o que vai ser dessa criança, desse adolescente, quando eu morrer? Quem vai cuidar dele? Como ele vai viver sozinho?” O que eu percebia quando estava fazendo entrevistas com as famílias é que eles acabavam se isolando junto com as crianças devido aos comportamentos ou para evitar algumas frustrações, tanto com as crianças quanto com outros familiares. Então, eles deixavam de fazer muita coisa e as mães acabam vivendo em função dos filhos. Isso faz com que essas crianças e adolescentes estejam apartados da relação com o outro, de uma vida social, como em festas de aniversário ou em outros lugares que eles possam passear ou realizar outras atividades, por exemplo, longe de um convívio cotidiano mesmo. Esse levantamento qualitativo me fez perceber, portanto, esse outro lado, me fez desenvolver essa empatia pela dificuldade do outro não somente pensando na criança, mas vendo que por trás dessa criança e desse adolescente tem uma mãe que também precisa de ajuda.
Na sua última resposta, houve a menção de que não existe procura tão grande assim por parte das mães de adolescentes em termos de aconselhamento ou cuidado profissional. Por que isso acontece nessa faixa, haja vista que a adolescência, por si só, é bastante complexa?
Não creio que seja o fato de as mães não buscarem, mas o fato de as mães terem dificuldade em encontrar um lugar para buscar ajuda. Quando eu estava fazendo essa pesquisa aberta, outra dificuldade para as mães estava ligada a essa fase da adolescência, da descoberta sexual das crianças, dessa exploração que eles começam a ter – tanto para os meninos como para as meninas, com a entrada da menstruação, por exemplo. Na ocasião, era uma época bem difícil para elas e não havia quem procurar, quem pudesse sanar essas dúvidas – isto é, profissionais capacitados para orientar principalmente nessa fase da adolescência.
Então, essa foi uma parte que me marcou também porque são coisas que nós nem sempre pensamos. Afinal, se para um adolescente comum essa fase de transição já é bem difícil, quando existe outro contexto fica ainda mais complexo. No caso das meninas, por exemplo, como explicar sobre a menstruação, o que fazer, a parte da higiene, então, elas não sabiam como lidar ou qual era a melhor opção. Ir ao médico ou tomar um remédio para encerrar a menstruação? Ou tentar outros métodos? Eu via uma aflição muito grande.
Com relação à oferta de serviços, a maioria acolhe as crianças, pensando até na parte da intervenção precoce e tudo o que pode ser estimulado na criança para fazer a diferença. E aí, quando pensamos na parte neurológica e da plasticidade cerebral, à medida que vai crescendo e fica muito tempo em um serviço a criança permanece num platô e não há tanto desenvolvimento a partir daí, e os serviços acabam encaminhando as crianças para outro lugar. Desse modo, com a dificuldade de encontrar esse lugar quando o filho é adolescente, a melhora do ganho do desenvolvimento acaba sendo um pouco menor, principalmente nos casos mais leves – posto que os casos mais graves acabam encontrando instituições enquanto nos casos mais leves não existe para onde ir.
Como é que essas mães e pais lidavam com o fato de não encontrarem esses lugares? Como eles reagiram nos momentos mais agudos, por exemplo?
As dificuldades vão mudando conforme a idade. Parece que quando nós vencemos uma batalha vem outra. E aí, mesmo num caso mais leve, pode aparecer um pico e uma dificuldade maior em outra etapa da vida. Pelos relatos que as mães e os pais me passaram, a reação funcionava na base da tentativa e erro. Eles até procuravam alguns médicos que orientavam de forma superficial o que fazer. Mas as mães e os pais afirmavam que na prática era difícil fazer isso funcionar. Principalmente pela rotina da casa ou da vida, assim, de ter outras pessoas morando na casa, como organizar as coisas, do que pode ou não fazer. Como explicar o que pode ser feito, por exemplo? Acho que o mais difícil do quadro da pessoa com espectro autista é que, na cabeça dessas pessoas, todo mundo pensa igual a elas. E se ela não vê problema naquilo é muito difícil mostrar o que pode e o que não pode ser feito em determinado ambiente. Então, sobretudo no que tange às regras sociais, é difícil entender o que pode e o que não pode ser feito em cada um dos ambientes de uma casa, por exemplo. Existe, portanto, essa dificuldade em compreender que algo que determinada atitude pode incomodar o outro. O que essas famílias me relatavam é que não havia essa orientação e elas buscavam conhecimentos na base da tentativa e erro mesmo.
Como é que essa etapa é enfrentada em outros lugares? A sua pesquisa chegou a trazer informações de como é isso fora do Brasil, por exemplo?
Durante o meu doutorado, a proposta era fazer um estudo longitudinal acerca do tratamento, aí pensando só na parte de dados: i) quanto tempo o paciente fica em atendimento; ii) como é o desenvolvimento dele nesse tempo de tratamento; iii) pensando especificamente no serviço prestado pela USP, quantos pacientes foram atendidos e quanto tempo eles ficaram. Então, ainda no doutorado, eu tive a oportunidade de ir para os Estados Unidos e conhecer algumas instituições, comparando o serviço lá e aqui para identificar o que estamos fazendo de diferente ou igual.
E aí, o lado bom é que nós temos bastante coisa parecida com relação aos serviços prestados, mas, quando questionei essa parte de adolescentes, eu vi que lá tem uma estrutura melhor para ajudar nessa outra fase. Aqui nós estamos muito focados no atendimento das crianças.
Lá eles já estão mais preparados com o tratamento dos adolescentes e dos adultos. Então, vejo que lá há mais estrutura para essa rotina de atividades diárias. Ou mesmo de organizar grupos de apoio, como se fosse uma república para adolescentes autistas, que moravam juntos, mas contavam com a supervisão de um cuidador que passava na casa deles uma vez ao dia para ver se estava tudo bem. Dessa forma, ter essa preocupação: deixá-los ter autonomia, mas ter esse cuidado de uma pessoa por fora. Aqui no Brasil eu não tenho conhecimento de um trabalho assim, seja privado ou público. É uma coisa que não é falada. Não existem apenas crianças autistas. Elas depois viram adolescentes e adultos.
Um fenômeno dessa geração é a existência dos “pais helicópteros”, aqueles que estão sempre girando em torno dos filhos. Quão importante é a autonomia para os adolescentes autistas?
De fato, é uma coisa que acontece. É difícil porque as famílias tentam evitar algumas situações e ajudar ao máximo os adolescentes, mas é superimportante dar essa autonomia. Em outras palavras, fazer algumas tentativas e ver como é que eles se sairiam em determinadas situações. Como isso seria possível? Fazer esse cuidado mais de longe e ver como eles lidariam com isso. É certo que existem vários graus de autismo, e que em alguns casos são mais complexos para que seja concedida essa autonomia ou que a pessoa consiga fazer essas atividades diárias sozinho, mas existe outro lado onde há bastante possibilidade.
Então, é preciso deixar explorar e não ter esse ímpeto controlador de cuidado extremado. E uma das coisas que nós mostramos, quando vamos trabalhar no quesito de estimulação de linguagem e de comunicação, como é possível incluir uma criança no dia a dia: para colocar a mesa, para fazer um suco, para ajudar a colocar a roupa na máquina – separando por cores ou por tipo de tecido. Então, nós estamos estimulando na parte de vocabulário, mas também inserindo essa criança na rotina de casa, e que não faz mal nenhum.
Com isso, esses jovens podem ter autonomia e responsabilidade, ainda que sejam em atividades mais simples, correto?
Sim, com certeza. Sobre isso, aliás, eu tenho uma experiência de atendimento online que posso compartilhar. Era um adolescente com TEA e, na hora do atendimento, eu enviava o link diretamente para ele. Da mesma forma, se havia incompatibilidade de horário, era com ele que eu tratava do reagendamento. Acho que são pequenas coisas que vão mudando o comportamento do adolescente, enfatizando que ele tem responsabilidade para com o horário que foi acertado previamente. Você vê o comportamento mudando por um simples detalhe de organizar a agenda. Uma vez que se aplica isso em outras áreas, o comportamento dele vai mudando com base nesse princípio de ação e reação: você faz uma coisa que gera outra. Isso pode ajudar bastante no convívio da casa e até na confiança dele, porque é essa mensagem que está sendo transmitida: “você consegue, é possível fazer tal coisa”.
Existem outros exemplos de como essa autonomia na adolescência é capaz de tornar as pessoas mais aptas a lidar com suas próprias responsabilidades?
Em uma cidade como São Paulo, existem os perigos para qualquer pessoa. Andar na rua, por exemplo, se torna uma preocupação para todos os pais e mães. Mas se a criança ou o adolescente gosta de comprar figurinhas talvez seja o caso de deixar que ele vá até a banca e possa fazer isso sozinho. Ou, então, se ele está no shopping, o fato de ele poder comprar a própria comida é um passo nessa trilha da autonomia. São pequenas coisas que ele aprende que está sozinho e é capaz de fazer. Ao mesmo tempo, nós vemos, também, esse adolescente encarar uma coisa que é difícil, pois, para pedir um lanche, é necessário interagir com outra pessoa, fazer uma escolha. É preciso, além disso, lidar com a pressão do tempo – porque se demorar para escolher e existir uma fila atrás é necessário ser rápido. A minha experiência diz que isso incomodava muito. No entanto, uma vez que existia esse problema, era mais fácil trabalhar em como resolver. Portanto, se nós expomos o adolescente a essas situações, nós conseguimos auxiliá-lo em como resolver essas dificuldades, também. Agora, se eles não são expostos, nós não sabemos que essa dificuldade existe. Outro exemplo de paciente adolescente tem a ver com a mudança de terapeuta. Eu via que as questões que o adolescente queria trazer, ou mesmo algumas perguntas, o adolescente não queria trazer para mim. Quando nós trocamos por um terapeuta homem, isso mudou – tanto a interação como as perguntas. Então, isso também pode ser um detalhe que nós não percebemos, pois nós expomos a criança e eles podem trazer outras dúvidas.
A questão da sexualidade ainda é um tabu?
Sim, porque é um assunto que ninguém fala, mas que precisa ser abordado porque existe curiosidade. E com o acesso à internet nós conseguimos encontrar muita coisa – para o bem e para o mal. Então, penso que não deve ser um tabu e deve, sim, ser abordado e mostrado onde as pessoas podem buscar informação ou quem conversar. Sei que existem, na Psicologia, programas que trabalham principalmente com esses grupos adolescentes, ou até grupos de jovens, para trocar experiências e ajudar nessas dúvidas, principalmente na parte da sexualidade.
Qual é a importância da rotina e da organização para o adolescente ter controle sobre si próprio e das suas atividades no médio e longo prazo?
A rotina é boa para todo mundo. Mas principalmente para pessoas com TEA facilita muito. Saber o que vai acontecer ajuda na maneira como nós nos preparamos para esses eventos. Muitas pessoas atentam para o cuidado que devemos ter com as rotinas (para que elas não se transformem em obsessões). Só que é preciso prestar atenção e distinguir o que é obsessão e o que é rotina diária. Nós temos rotina no nosso dia a dia: nós sabemos o horário para entrar no trabalho, o horário que vamos almoçar. Às vezes, isso muda – quando aparece um compromisso e nós vamos almoçar mais tarde, ou estamos programados para ir a determinado lugar e isso muda. Esses imprevistos acontecem. É importante deixar claro que rotinas existem e que, algumas vezes, isso vai ser mudado – em alguns casos, em cima da hora; em outros, com alguma antecedência. Seja como for, a rotina auxilia muito na forma como as pessoas vão se preparar para essa vida independente, autônoma. Se as pessoas sabem o que têm de fazer, é mais fácil se organizar para essas atividades.
* Fabio Silvestre Cardoso (@fscardoso_) é jornalista, doutor em Integração da América Latina pela USP e mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi. É autor do livro Capanema, lançado pela Editora Record.Linkedin
** Letícia Segeren (@lesegeren) é Especialista em Linguagem e Fluência pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia, Doutora na área de Ciências da Reabilitação pela Universidade São Paulo – USP;
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