Por que é importante detectar sinais de autismo na primeira infância?

De acordo com o levantamento mais recent...

De acordo com o levantamento mais recente realizado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), uma em cada 160 crianças possui o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Esse número impõe um desafio considerável para pais, médicos e pesquisadores, a saber: quanto mais cedo for feito o diagnóstico, melhor será a condição de vida da criança, e isso tem a ver com a primeira infância, que contempla aqueles que têm entre 0 e 3 anos. Para Maria Izabel Tafuri**, pós-doutora e doutora em Psicologia Clínica pela USP, com mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília e especialista em psicanálise com crianças, se, por um lado, houve um avanço considerável na detecção dos sinais de autismo nessa faixa etária, por outro, não houve grandes avanços no que se refere ao tratamento transdisciplinar, especialmente no sistema público de saúde.

Na entrevista que concede a seguir, além de justificar a importância do tratamento transdisciplinar, a especialista detalha o impacto do TEA na primeira infância, ressaltando, também, o papel da família e dos professores para evitar que as crianças se sintam desamparadas.

Num momento em que a pandemia ainda é um problema para o país, a preocupação junto às famílias que têm crianças nessa condição é mais do que necessária. É como se as crianças estivessem abandonadas.

A entrevista completa logo a seguir.

Blog MicroExato: O quanto nós avançamos em relação à descoberta da TEA na primeira infância? Como era a situação no início do século e como é hoje?

Maria Izabel Tafuri: Nós avançamos consideravelmente em termos de detecção dos sinais de autismo na primeira infância. Não avançamos muito na questão do tratamento público e muito menos do tratamento transdisciplinar – isso ainda falta muito para que possamos alcançar, principalmente no sistema público de saúde. As crianças estão bastante abandonadas e com essa pandemia mais ainda. As crianças não têm onde entrar e os pais estão muito aflitos, sofrendo muito com as crianças dentro de casa, com crise. Então, em termos de tratamento, acolhimento e lugar para essas crianças estarem ainda falta muito no Brasil. Mas quanto os sinais precoces na primeira infância, de 0 a 3, nós evoluímos bastante.

Blog Microexato: Por que essa evolução aconteceu nos últimos anos?

Maria Izabel Tafuri: Todas as pesquisas indicam que, quanto mais cedo nós detectarmos sinais de autismo, mais chance a criança tem de entrar num desenvolvimento praticamente normal – isto é, no sentido de poder trabalhar, até mesmo poder se casar, de ter uma vida digna. Que possa, enfim, se reconhecer como sujeito e como pensante de si mesmo, um sujeito de desejo, como nós chamamos na psicanálise. Nesse sentido, quanto mais cedo pudermos detectar esses sinais, mais chances nós temos. E mais: o fato de nós detectarmos sinais na primeira infância não significa necessariamente que a criança possa ser rotulada no transtorno autista – e esse é meu pensamento, que é oriundo da visão psicodinâmica. Agora, para a visão clássica, psiquiátrica, existe a consideração que se já forem detectados os sinais, a criança já está dentro do TEA, e aí não tem mais chances de sair (por ser uma doença crônica, não se pode dizer que a pessoa se curou do autismo). Esse é um problema sério nas nossas dificuldades de conversas entre os pares, psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, psicólogos comportamentais, cognitivistas. Existem formas de pensar diferentes, que rotulam bebês de sete, oito meses, que não estão olhando quando estão amamentando, que não brincam com os brinquedinhos do berço, que não exploram os rostos das pessoas com quem eles estão. Então, essas crianças estão em estado de sofrimento autístico, mas não necessariamente vão desenvolver o transtorno. O fato de nós podermos intervir não significa, também, que nós estejamos evitando o transtorno, ou que impedimos que a criança entrasse no transtorno. Não é isso. Quando falamos em intervenção precoce, é para cuidar de um sofrimento de uma criança, e não para evitar o transtorno autista. Isso precisa ficar muito claro.

Blog Microexato: Por que o tratamento transdisciplinar é tão importante?

Maria Izabel Tafuri: Porque quando um bebê, por causas desconhecidas, não olha para quem o está amamentando ou para quem está com ele todos os dias, ou seja, não é um bebê responsivo; ou quando um bebê não aconchega no colo, um bebê duro ou mole demais. Esse bebê tem uma série de dificuldades. Tanto podem ser transtornos sensoriais, como pode ser, também, transtorno visomotor, no sentido de não coordenar a visão com os movimentos do corpo, daí ele não consegue fazer isso; existe, ainda, uma questão mental, de modo que ele não pode processar psiquicamente as sensações que ele tem no corpo; e a dificuldade de compreender o que está acontecendo em volta. Então, ele precisa de intervenções de várias modalidades de tratamento, principalmente, nessa época, as sensoriais, que são com os terapeutas ocupacionais e os fonoaudiólogos. Claro que os psicólogos são importantes também porque ele vai cuidar dos pais e do bebê, porque ele vai escutar a angústia dos pais para que estes não se sintam pais que não saibam cuidar. E dar o apoio a eles para que os pais consigam dar suporte ao bebê sem que se sintam inadequados.

Blog MicroExato: E esse cuidado transdisciplinar tem efeitos práticos no sentido de mitigar o sofrimento desse bebê?

Maria Izabel Tafuri: Sim! Nós conseguimos respostas rápidas. Existem casos que eu já atendi de crianças que não olhavam e, depois de uma conversa com os pais, começa a dar atenção diferenciada para esse bebê, e esta criança já começa a se tornar mais ativa desde que haja a conversa junto com os pais. Então, sim, é possível conseguir respostas muito rápidas – a menos, claro, que seja um bebê com um transtorno neurológico, um transtorno de comorbidade grave, aí teremos uma resposta menos favorável.

Blog MicroExato: Como a pandemia tem potencializado as dificuldades dos pais quanto ao cuidado para com as crianças com TEA?

Maria Izabel Tafuri: A criança que já está diagnosticada com TEA é alguém que precisa muito de rotina. Para nós, que vivemos uma vida que chamamos de “normal”, quando falta uma coisa na nossa rotina, nós já sentimos, mas ainda é possível equilibrar, de uma forma ou de outra, a ausência de alguma coisa. A criança autista não tem essa flexibilidade psíquica para substituir a ausência de algo por outra coisa. Por exemplo, hoje mesmo chegou uma criança aqui, cujo pai trocou o copo de água dela, e a criança ficou o dia inteiro sem tomar um pingo d’agua. Eu expliquei para o pai que não é birra, tampouco intransigência, mas um transtorno sensorial: ele só vai tomar a água que estiver no copo que ele conhece. Não adianta dar outro copo e querer enfiar goela abaixo que essa criança não vai aceitar. Agora, imagina essa criança que ficou sem o psicólogo, sem o fonoaudiólogo, sem o terapeuta ocupacional, sem a escola onde ele frequentava, apenas com os pais trancados dentro de casa? Essa criança surta, não tem outra condição. E os pais, com isso, estão vivendo um dilema.

Blog Microexato: E quais têm sido as alternativas para casos assim? Como os pais têm feito para enfrentar essa situação?

Maria Izabel Tafuri: Nós temos conversado com os pais online. Aqueles psicólogos que não têm comorbidade e que se sentem seguros para atender recebem as crianças ou vão ao encontro delas para ajudar um pouco. Ainda assim, as instituições estão fechadas. Durante muitos anos, eu dei aula na Universidade de Brasília e lá nós temos a clínica-escola, onde eu recebia as crianças autistas para tratamento. Como a universidade está fechada, a clínica não abre as portas. Então, como é que nós vamos poder atender essas crianças? No caso de quem tem a estrutura de consultório particular, existe a flexibilidade de conversar online com os pais – com o objetivo de proporcionar um pouco de sustentação a essas famílias. Só que não é o suficiente.

Blog Microexato: Como é que se dá a relação das crianças na primeira infância e os seus avós?

Maria Izabel Tafuri: É muito complicado, porque, geralmente, os avós consideram que os pais não estão sabendo criar o neto. Para os avós, é como se os netos estivessem sem educação, ou sem noção, ou que os pais não estão conseguindo ensinar. Muitas vezes, acabam crucificando os pais no sentido de achar que aquela criança é mal-educada – quando, na verdade, se trata de uma criança que tem transtorno. Então, na clínica, nós orientamos esses avós junto com os pais para que não se crie esse tipo de rivalidade. Já recebi muitos casos aqui de pais que romperam com suas famílias de origem em função das imposições e críticas negativas. Então, muitas dessas crianças não são convidadas para os aniversários dos primos ou para casamentos – porque fazem muita bagunça. A própria família vai cerceando a vida social da criança. Isso é comum de acontecer.

Blog Microexato: Ainda que seja na primeira infância, essa criança sente que está sendo evitada, correto?

Maria Izabel Tafuri: Sim, sente. Nós aprendemos isso com a clínica. Afinal, se uma criança está isolada ou ensimesmada, como é que nós vamos pensar que ela está sendo rejeitada? Ela nem vai responder aos estímulos de fora, nem vai se sentir rejeitada. Só que a história não é bem essa. A forma com a qual essa criança tem de estar ensimesmada é um modo que ela tem de reagir aos estímulos de um jeito diferenciado. Então, não é que a criança não reage, não responde ou não atende aos chamados. Ela atende, sim, se nós adequarmos a forma de nos relacionarmos com ela. Sendo assim, ela sente rejeição, sente a falta de amigos próximos a ela. Por exemplo, uma criança de 3 anos de idade que está ingressando numa creche, ou mesmo uma de 2 anos que está com sintomatologia autística, ela não vai chegar para o amiguinho, dizendo “brinca comigo?” Não, ela vai chegar de costas, vai dar um solapado na criança. Só que na verdade ela está com vontade de chamar a outra para brincar, mas não sabe como. Isso é visto pelas professoras como a criança que está agredindo, que está batendo, que não está conseguindo se relacionar, ou que não tem interesse em brincar. Mas não se trata de falta de interesse; antes, é falta de possibilidade de brincar de forma usual. Por exemplo, nós entramos com os acompanhantes terapêuticos nas creches. E quando uma criança faz isso que eu acabei de descrever com a outra, o acompanhante terapêutico intervém e diz: “Olha, você queria brincar muito com o seu amiguinho. Vamos convidá-lo para brincar?”. Aí a outra criança percebe o que o outro colega quer. É muito interessante que as crianças nos ensinam muito. Geralmente, alguns dos coleguinhas de uma criança ensimesmada vão pegá-la pelas mãos para levar para brincar ou pedem à tia para ensinar essa criança a falar. Então, existe até mesmo essa possibilidade, de crianças que assumem esse papel de ajudantes, isso acontece com alguma frequência, até, daqueles que são mais sensíveis e auxiliam. Por outro lado, têm outros que vão bater, chutar; não vão querer se sentar junto com essa criança. Nós temos, portanto, várias reações nas escolinhas.

Agora, o pior de tudo é o preconceito dos próprios adultos e até mesmo dos professores. Muitas vezes a reação é assim: “ele aprendeu a desenhar? Claro que não, ele é autista!”

Blog Microexato: Mas ainda hoje existem respostas assim?

Maria Izabel Tafuri: Sim, infelizmente. Nós ainda temos muito preconceito até mesmo dentro das escolas. Desse modo, nosso trabalho na psicologia é conscientizar os professores: “Ele não está desenhando assim por conta do autismo. Vamos pensar de uma outra forma?” Aí nós convidamos o professor a refletir de outro jeito sobre essa criança de modo a oferecer a ela outra condição para desenhar. Então, se a criança não consegue pegar em um lápis, talvez ela consiga fazer modelagem em argila. Nós vamos dando outros materiais para a criança para que ela possa desenvolver. E isso faz parte do processo de inclusão. Em outras palavras, esse processo se dá com os profissionais que estão trabalhando com essa criança na escola.

Blog Microexato: Como é que nós nos organizamos para tornar o nosso ambiente mais inclusivo para essas crianças na primeira infância?

Maria Izabel Tafuri: Com cursos de capacitação e com a mídia. Quanto mais nós pudermos conversar com os pais em particular, e com a sociedade em geral, que essas crianças precisam estar entre nós, precisam frequentar as escolas, precisam dos professores, precisam dos coleguinhas e precisam, sim, de uma visão diferenciada. Não é porque ela “incomoda”, ou porque ela grita, ou porque ela chuta, ou porque ela morde, que ela não pode ficar na escola.

*Fabio Silvestre Cardoso é jornalista, doutor em Integração da América Latina pela USP e mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi. É autor do livro Capanema, lançado pela Editora Record. Linkedin

** Maria Izabel Tafuri é pós-doutora e doutora em Psicologia Clínica pela USP, com mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília e especialista em psicanálise com crianças.

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